segunda-feira, 31 de maio de 2010

Exemplo a ser seguido

Bom dia. E aí como foi um fim de semana? Hoje estou revendo uma revistas e achei este artigo. Apesar de ser um pouco grande, peço que leiam, bjóks!

Cybele e as letras


Como uma aluna tachada de caso perdido se transformou numa professora capaz de quadruplicar a alfabetização em escolas do interior da Bahia
Ana Aranha, De Palmeiras, Bahia


REESCREVENDO VIDAS Cybele Amado (de rosa) leva o prazer de ler e de escrever a 115 mil alunos do interior baiano. Na foto, com a equipe de professores que formou na escola do Capão, onde tudo começou

"Ela não vai aprender a ler."
A sentença, afirma Cybele Amado, foi dada a sua mãe pela professora da 3ª série. "Minhas lições voltavam riscadas de tinta vermelha", diz ela. "Eu tinha uma dislexia leve, trocava o V pelo F, mas me condenaram a repetir o ano. Caí na sala de minha irmã mais nova. Foi um trauma." A história poderia ter acabado com um ponto final precoce. Mas Cybele mudou o enredo. Não só se tornou professora como passou a reescrever o destino de milhares de crianças no interior da Bahia: criou um método capaz de quadruplicar os índices de alfabetização e reduzir em mais de quatro vezes os de evasão.
Primeiro, Cybele libertou-se da carapuça de aluna com dificuldades de aprendizagem. Na 8ª série, já balançava os pés atrás da mesa de professora. Tinha sido convidada a ensinar matemática a colegas em situação de risco. Depois fez faculdade de Educação e pós-graduação em Psicopedagogia. Chegou a montar um colégio particular na capital baiana, em parceria com quatro amigos, chamado Escola Alternativa. Mas ela achou pouco. Acabara de voltar de férias da Chapada Diamantina quando tomou a decisão de mudar-se para lá, para mudar a realidade de lá.
Aos 23 anos, Cybele abandonou Salvador para morar sozinha no Vale do Capão, um povoado de mil habitantes a 480 quilômetros da capital. Cercada pelos paredões de pedra da Chapada, sua casa não tinha sequer energia elétrica. Todo fim de tarde a jovem professora acendia uma fogueira para dissipar o medo do escuro. Quando a luz do fogo não era suficiente para espantar tantas sombras, ela chamava uma estudante para lhe fazer companhia.
Cybele corrigia as lições dos alunos de 5ª série quando levou um susto: encontrou nos textos os mesmos traços de dislexia de sua infância. "Fui procurar a raiz do problema", afirma. "Foi aí que descobri como a dislexia leve pode ser fruto do ensino." Cybele desconfiou que sua dislexia havia sido gerada pela deficiência da alfabetização que recebeu. Já tinha certeza de que repetir o ano fora o pior remédio.
Montou num quarto da casa um pronto-socorro para crianças pequenas com dificuldades de alfabetização. Depois de avaliá-las, Cybele concluiu que apenas uma tinha sinais de distúrbio. "As outras eram vítimas de um sistema educacional em que é normal gritar com a criança, e a língua é ensinada como se fosse um código." O método dos professores antigos do Capão, segundo ela, se restringia à cartilha do "B mais A é igual a BA". As crianças sabiam ler as sílabas e pronunciar as palavras, mas nem sempre entendiam o significado.
O choque de reencontrar seus fantasmas nos textos dos alunos foi tão grande, diz Cybele, que voltou a trocar as letras: encontrou na própria caligrafia um "veroz" onde quis escrever "feroz". Ainda hoje tropeça no sotaque ao contar o episódio.
Na escola com chão de terra batida, paredes sujas e nenhuma identificação na porta, ela buscou um jeito de fazer criança pequena gostar de ler e de escrever. Não inventou metodologia nova nem teoria revolucionária. Montou uma rede de apoio ao professor que estimula a reflexão sobre o ensino e o uso de brincadeiras, histórias e atividades fora da sala. Implantou também um sistema de acompanhamento que investiga as atividades que dão certo e as que precisam ser reformuladas.
A maioria dos adultos do Capão - oficialmente o nome do povoado é Caeté-Açu, mas ninguém o chama assim - não escreve muito mais que o nome. De repente, os filhos começaram a fazer poesia e pedir prosa de Clarice Lispector. A notícia se espalhou. Em 2000, o Projeto Chapada começou a tecer uma rede que hoje envolve 1.200 escolas. São mais de 5 mil professores acompanhados por coordenadores pedagógicos. Todos eles sob a orientação exigente da professora Cybele Amado. Nos seis anos de projeto, o índice de evasão escolar caiu de 23% para 5% - metade da média nacional para a zona rural.
Em 2005, o projeto alcançou mais 16 municípios. Em apenas um ano, o índice de alunos alfabetizados na 1ª série pulou de 11% para 40%. É quatro vezes maior do que era - e ainda é pouco. A realidade do interior da Bahia é a mesma de 80% dos professores da zona rural do país: só estudaram até o ensino médio. A maioria pega o giz para ensinar as letras sem ter passado por uma faculdade. O que Cybele mudou? "Oxente, a diferença é que passamos a pensar a educação como profissionais, não como professorinhas", diz ela.
Conhecida pelas escolas em que circula como um doce general, Cybele é delicada no falar, mas direta na mensagem. "Educação não é missão para quem gosta de criancinhas." Segundo sua cartilha, gostar é verbo escasso. Tem de ser "louca por criança". O resultado são alunos curiosos, como Laís, de 7 anos. A menina não desgruda dos gibis da Turma da Mônica na hora do intervalo. Toda semana leva um livro diferente para casa. O preferido é o de Chapeuzinho Vermelho. Fez até a mãe, Diosina Pereira, prometer que vai à cidade comprar um só para ela.
Diosina acompanha o que acontece na escola pela Associação de Pais, Educadores e Agricultores. A comunidade se organizou no dia em que Cybele fez uma greve entre os alunos para exigir a contratação de professores nativos do povoado. Antes, os professores faltavam toda segunda e sexta-feira com a desculpa de que tinham de viajar os 30 quilômetros que separam o povoado da sede, a cidade de Palmeiras.
"Antes de Cybele, aula de Português era só tomar ditado e fazer cópia. A escola não tinha nem giz!", diz Rosângela Mendes. "Ela trouxe música, fez a gente escrever cartas poéticas." Rosângela estava na 6ª série quando a forasteira chegou. Fez muita companhia a Cybele ao lado do fogo nas noites escuras. Hoje é diretora da escola.
Além de Rosângela, outros oito alunos viraram professores. Todos dão aula na escola do Capão. Cybele se emociona quando volta à escola do Capão, de onde saiu há menos de um ano para expandir o projeto. Logo é cercada:
- Cybele Amado! - diz uma criança.
- Você não sabe quanto eu tirei em Português... - diz uma segunda criança.
- Vai voltar quando? - diz outra.
A professora responde: "Lembra da história de ter de escolher entre ajudar 200 ou ajudar mil?". Horas depois, em seu escritório, ela é mais precisa: "São 115 mil alunos beneficiados pela rede". E já vai dizendo: "Coloque aí o mais importante: aqui não se faz nada pela metade. Todas essas crianças saem capazes de se deliciar com o que lêem".
SEMEANDO O ALFABETO
A rede de apoio ao professor tem 27 municípios, 1.200 escolas, 5.400 professores e 115 mil alunos
Apanhador de meninos
DOUTOR PARTEIRO Áureo Augusto em uma de suas consultas pouco ortodoxas, pagas com jacas e mamões
Cybele Amado não teve filhos, mas é mãe do Vale do Capão. Além de espalhar o gosto pela leitura entre as crianças, ela não perde os primeiros minutos de suas vidas. É que a professora-mãe se casou com o médico-parteiro da comunidade: doutor Áureo Augusto. Ele atende a população local de graça há 23 anos e já perdeu a conta de quantos meninos acolheu na companhia da enfermeira improvisada. O casal recebe o pagamento de partos e consultas na forma de frutas, verduras e ovos que o povo vai deixando na porta. Eles, que são vegetarianos, agradecem. "No começo, a gente chegava e já tropeçava numa jaca. Hoje, deixamos uma cesta do lado de fora. É só chegar e recolher a feira", diz Áureo. Quando andam pelas estradas, Cybele vai apontando para o marido os rostos que ele pôs no mundo. "Esse povo tem muito filho! Mas desejam cada um que nasce. Vi uma mãe perder o seu 16o e chorar como se fosse o único", diz o parteiro. Áureo deixou Salvador para fundar uma comunidade alternativa na Chapada. Acabou acolhendo bebês com luz suave e música ambiente. Em sua casa e no consultório só se pode entrar descalço. Além de médico, ele é artista plástico, escritor e marceneiro. Se a política desembarcasse em Capão, o casal brinca que faria uma bela plataforma eleitoral: "Educação e saúde!".
Bom de bola - "e de poesia"
A MELHOR JOGADA Saulo dos Santos é um exemplo do que acontece quando a escola não desiste do aluno, por mais que ele tente desistir da escola
Saulo dos Santos, o menino do lance acrobático da foto acima, tem 13 anos e três repetências. Ele era um garoto de olhos agitados e respostas rápidas que havia perdido o interesse pelos estudos. Ou melhor: não dá para perder o que nunca se teve. Enquanto seus colegas assistiam às aulas, ele escapava para a quadra de terra nos fundos da escola. "Eu ia mal porque não queria estudar mesmo, preferia jogar futebol", diz Saulo. A professora Cybele olhou bem para ele. Teve longas conversas com o garoto, seus pais e professores para entender a aversão pelas letras. Percebeu que para chamá-lo para dentro da escola era necessário investir no que ele tanto gostava no lado de fora. Saulo foi escalado para o time de futebol do povoado e o treino condicionado à presença na aula. Esse ano ele não perdeu uma. Também propôs e ganhou o primeiro campeonato de futebol da escola e se revelou um belo artilheiro. O menino faz parte de uma família de 16 filhos, 14 vivos, típica do interior da Bahia. Sua mãe, Maria das Graças Santos, afirma: "A gente vive da roça, da graça de Deus e há quatro meses de uma bolsa do governo". Ela mesma parou de estudar na 4ª série porque não tinha professora de 5ª. Agora, está abismada com o filho: "Esse menino não se interessava por nada, mas a escola não largou ele. Hoje, ele vai estudar até debaixo de chuva", diz. Maria das Graças fala firme sobre os filhos que perdeu e sobre o cotidiano sem energia elétrica. A voz só fraqueja quando se lembra da despedida de Cybele. "Ela fez uma ceia cheia de sentimento. Deu uma semente para cada um. A nossa eu plantei aí fora", diz. "Deu um girassol." Saulo interrompe a entrevista para saber se o São Paulo tem time júnior. É um baiano são-paulino. Parecia que não precisava nem perguntar, sua aula preferida só podia ser Educação Física. Ele esclarece: "Na escola? Não, o que eu gosto aqui é de escrever. Sou bom de poesia!".

Revista Época - 12/01/2007 Edição nº 452

Um comentário:

  1. Poxa é um exemplo a ser seguido mesmo. O artigo é grande, mais é tão interessante que quando percebemos já terminamos de ler. Uma boa educação depende muito do incentivo. Fico alhando as crianças de rua aqui perto de casa, dou um lanche, converso mais vejo que é meio que em vão. Estou tentando ver meu tempo p/fazer algo, pois estou terminando minha terapia e vou ter esse tempo. Parabéns pelo artigo.

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